segunda-feira, agosto 27

A Juventude em diferentes textos


Alice no país das Maravilhas” (melhores redações – FUVEST 1999)

A juventude é contestadora, revolucionária, inovadora. A própria idade e imaturidade do adolescente lhe dá a sensação de onipotência e vontade de mudar o mundo. Certo? Não, errado. Infelizmente a jovem geração brasileira da atualidade é, em grande parte, caracterizada pela futilidade, pela falta de consciência social e pelo conformismo.
Ao passarmos pelos inúmeros shoppings do Brasil, localizamos um extrato da sociedade, característico dos anos 90: a juventude de shopping, possuidora de valores que envergonhariam a juventude que há dez anos lutava por “diretas já”. São jovens preocupados com ostentação, seja através de roupas de griffes, telefones celulares e carros importados.
A injusta distribuição de renda do nosso país, e a criminalidade geraram jovens de condomínio fechado. Cercada em seu mundo de fantasia, essa geração não tem o mínimo de consciência social, e nem interesse em conhecer o que há por tráz dos muros de seu “país das maravilhas”. São pessoas, que muitas vezes não conhecem o valor do dinheiro, e que não sabem o quanto seus pais tiveram que trabalhar para obtê-lo.
É perceptível que a um período de agitação política e de manifestações sociais, que caracterizaram o regime militar, seguiu a geração atual, conformada e acomodada. Essa juventude não tem ideais. Reage ao problema dos “sem-terra” ou à quebra da saúde pública, como reagiria ao lançamento de uma nova coleção de roupas. Quem sabe o segundo fato fosse até mais interessante para ela...
Desse modo, a juventude de shopping, de condomínio fechado ou a juventude conformada são todos sinônimos para esses mesmos jovens da atualidade, que abdicaram de sua vontade natural de mudar o mundo, e de seu ímpeto revolucionário. Preferem contar com sua dose de alienação diária e fazerem compras.
É! Talvez seja realmente mais fácil, ou como eles diriam: “mais legal”.


Juventude de contrastes (melhores redações – FUVEST 1999)

A juventude do fim do século [XX] é, muito comumente, encarada sobretudo sob seu lado negativo. São apontados constantemente, por exemplo, o frequente uso de drogas, a rebeldia e a negação dos mais diversos valores tradicionais, a tendência à “cultura do lixo”. Apesar de ser inquestionável a existência de um “espírito jovem” que independe da geração em questão, o comportamento dos jovens é, seguramente, consequência da sociedade em que vivem.
Dessa forma, a geração atual é produto de seu tempo, e é daí que surgem os evidentes aspectos negativos. Portanto, é inegável que grande parte dos jovens carrega na sua natureza básica os mais diversos valores distorcidos: violência, falta de respeito, rebeldia, entre dezena de outros. Porém, é também inegável que a mídia e apropria sociedade atual têm um papel fundamental nesse tipo de formação.
Apesar de ser menos discutido, existe um lado positivo da juventude atual: ela é fruto da “era da informação”, e de um mundo extremamente modernizado. Nunca antes uma geração teve acesso tão rápido e eficiente à informação em geral, ou liberdade para discutir e questionar quaisquer temas. Consequência disso é a maior produtividade do processo de educação e ensino, e maior interesse e consciência por parte dos jovens em relação ao mundo que os rodeia.
Submetida simultaneamente a influências tão contrastantes, a juventude assume um comportamento heterogêneo, mas é comum à maioria a contestação e o inconformismo.  O acesso ao conhecimento traz consigo o desejo de mudanças sociais. Claro exemplo disso, no contexto brasileiro, é a luta pelo impeachment de Collor, à qual os jovens uniram-se e deram força.
Como análise final, a geração jovem do fim do século passa por rápidas e constantes transformações, paralelamente a um mundo com o qual acontece o mesmo. É seguro afirmar que, apesar dos fatores desfavoráveis, vem ocorrendo um progresso na forma de agir e pensar da juventude. Faz-se necessário que haja mobilização da sociedade para que esse progresso tenha continuidade e seja aprimorado.


O que fizeram com a rebeldia adolescente? (Felipe Neto, encontrado originalmente do blog “Controle remoto”); 

Nossos adolescentes estão calados. Amordaçados dentro de uma realidade jamais vista. Controlados pelo que a tecnologia vende como libertação. Perdemos as vozes dos meninos e meninas, insuportáveis como só eles conseguiam ser. Deram lugar a uma massa compacta de desmiolados inertes, pedaços de poeira velha varridos de um lado para o outro sem reação.
O que fizeram com a rebeldia adolescente? Aquela que criava verdadeiros monstrinhos completamente impossíveis de lidar. Onde foi parar a voz esganiçada dos que se proclamavam sempre com razão? Dos que podiam ter todos os defeitos, mas lutavam com unhas e dentes por suas crenças. Aqueles que não se deixavam passar por cima, que não admitiam a derrota, que explodiam sem razão mas partiam pra cima do que consideravam errado. Onde foram parar? Como uma maioria virou minoria?
Está difícil enxergar futuro na adolescência que observo hoje, cada vez mais dominada, cada vez mais apática, acatando ordens insanas como se justas fossem, ouvindo músicas melosas que apenas falam sobre amores não correspondidos. Porra! Cadê o som das batidas que despertavam os olhares sangrentos contra tudo e todos? O adolescente precisa de sua irracionalidade, de seus saltos perdidos rumo a paredes sólidas onde estatelam as fuças contra o concreto, de que outra forma podem amadurecer se não errando?
A adolescência precisa de sua rebeldia insana, necessita de uma interação social que leve ao “ignorar de conselhos”, das más influências. É um processo longo de aprendizado, principalmente de vida, do tipo que nos faz olhar para trás e dar gargalhada das loucuras cometidas, mas com a consciência de que foi espetacular. Vejo hoje adolescentes aceitando seus pais como legítimos donos, baixando a cabeça para absurdos impostos. Não há revolta, não há interesse em xingar.
Os que hoje ouvem McFly, antes ouviam os berros enlouquecidos de Chester Bennington e Serj Tankian. Inspiravam-se em ir contra o sistema, mesmo sem saber o que isso significava. Observamos cada vez mais uma geração do “sim, senhor”, ao invés do “vai se fuder, você não sabe de nada”. O que já gerou movimentos como o Punk, hoje gera apenas movimentos como o Emo. O que antes eram berros e discussões pessoais, hoje transformou-se em papinhos de Messenger. O comodismo impera.
O que fizeram com a rebeldia adolescente? Queremos aqueles insuportáveis de volta. Quebrem tudo, lutem pelo que acreditam, levantem essas merdas dessas orelhas.




Há certa resistência entre alguns estudiosos em usar termos muito fechados para definir povos, regiões ou gerações. Argumentam que definições simplificam os problemas e que toda simplificação tende a superficializar o debate. Outra corrente defende que, ainda que possam simplificar o debate, as definições têm o mérito de orientar as discussões. Fiquemos com a segunda opção. Até pouco tempo atrás, livros e filmes ainda falavam da Geração X, aquela que substituiu os yuppies dos anos 80. Essa turma preferia o bermudão e a camisa de flanela à gravata colorida e ao relógio Rolex, ícones de seus antecessores. Isso foi no início dos anos 90. Recentemente, o mercado publicitário saudou a maioridade da Geração Y, formada pelos jovens nascidos do meio para o fim da década de 70, que assistiram à revolução tecnológica. Ao contrário de seus antecessores slackers – algo como "largadões", em inglês –, os adolescentes da metade dos anos 90 eram consumistas. Mas não de roupas, e sim de traquitanas eletrônicas. Agora, começa-se a falar na Geração Z, que engloba os nascidos em meados da década de 80.
A grande nuance dessa geração é zapear. Daí o Z. Em comum, essa juventude muda de um canal para outro na televisão. Vai da internet para o telefone, do telefone para o vídeo e retorna novamente à internet. Também troca de uma visão de mundo para outra, na vida.
Garotas e garotos da Geração Z, em sua maioria, nunca conceberam o planeta sem computador, chats, telefone celular. Por isso, são menos deslumbrados que os da Geração Y com chips e joysticks. Sua maneira de pensar foi influenciada desde o berço pelo mundo complexo e veloz que a tecnologia engendrou. Diferentemente de seus pais, sentem-se à vontade quando ligam ao mesmo tempo a televisão, o rádio, o telefone, música e internet. Outra característica essencial dessa geração é o conceito de mundo que possui, desapegado das fronteiras geográficas. Para eles, a globalização não foi um valor adquirido no meio da vida a um custo elevado. Aprenderam a conviver com ela já na infância. Como informação não lhes falta, estão um passo à frente dos mais velhos, concentrados em adaptar-se aos novos tempos.
Enquanto os demais buscam adquirir informação, o desafio que se apresenta à Geração Z é de outra natureza. Ela precisa aprender a selecionar e separar o joio do trigo. E esse desafio não se resolve com um micro veloz. A arma chama-se maturidade. É nisso, dizem os especialistas, que os jovens precisam trabalhar. Como sempre.




Houve um tempo em que não existiam jovens. Existiam, evidentemente, pessoas na faixa dos 15 aos 30 anos de idade, mas elas não se viam como um grupo que compartilhava valores, códigos de conduta, vestimentas ou dialetos diferentes do restante da sociedade. Nesse tempo, que se estendeu até o final da Segunda Guerra Mundial, a infância era mais longa, interrompida por uma brusca entrada na vida adulta. As meninas eram meninas – ou seja, brincavam de bonecas – até os quinze anos, quando debutavam e começavam a espera, por vezes exasperadora, do pretendente com o qual se casariam. As filhas de famílias de classe média iam cursar a Escola Normal, onde aprimoravam seus dotes de futuras esposas e mães. Os garotos tinham infância um pouco mais longa: os folguedos podiam durar até os dezessete anos, quando a necessidade os empurrava para a rua, para aprenderem uma profissão e ajudar no sustento da casa. Aos mais ricos, que ingressavam nas faculdades, era permitido adiar um pouco mais a entrada no mundo do trabalho.
Essa etapa entre a infância e a adultice – a espera matrimonial das moças, a formação profissional dos rapazes – não era uma “juventude” no sentido que uso aqui, isto é, uma fase diferenciada da vida, durante a qual se compartilha valores, condutas, modas etc., diferentes dos adultos e crianças. O que todos queriam era abreviar, e não prolongar essa fase. Não havia qualquer prazer em ser jovem. A inexperiência era um martírio, motivo de escárnio para os mais velhos. Nos anos 1900, na Bolsa de Café de São Paulo, por exemplo, ridicularizava-se os rapazes que não exibissem vastos bigodes, símbolo de virilidade na Belle Époque. O que os moços e moças mais desejavam era serem valorizados e respeitados, o que só ocorreria com casamento, filhos, experiência profissional e diploma. Os jovens se preparavam arduamente para serem aceitos no mundo dos adultos, e nisso se resumia a juventude.
Tudo isso mudou no pós-guerra. Nos países ricos e, entre nós, nas famílias de classe média e alta das grandes cidades, surgiram condutas, modas, músicas, enfim, um universo de referências culturais identificadas à juventude. Nos Estados Unidos, graças à prosperidade econômica e ao costume dos empregos temporários, os jovens passaram a dispor de mais dinheiro, o que se traduziu na formação de nichos de consumo específicos para essa faixa etária. O nascimento do rock and roll, entre 1951 e 1952, exemplifica bem esse novo comportamento. Naqueles anos, garotos e garotas começaram a sintonizar rádios independentes de rythm and blues negro, a comprar discos desse gênero e a dançá-los, utilizando-se das coreografias do boogie woogie. Artistas como Fats Domino, Chuck Berry e Little Richard logo perceberam que o ritmo e o hedonismo da música negra era o que mais agradava os jovens. Por intermédio de pequenas gravadoras, lançaram composições que fundiam o rythm and blues ao country. Esse novo estilo, batizado de rock and roll, tornou-se um estrondoso sucesso e pegou de surpresa a grande indústria fonográfica. Pela primeira vez, os adolescentes ouviam um tipo de música diferente do que os seus pais gostavam.
Junto com a música, vieram o cinema e a moda. Hollywood logo percebeu que a juventude era um novo filão de consumo, e Juventude Transviada estreou em 1955, com James Dean interpretando Jim Stark, um rebelde agressivo que esbanjava charme e apelo sexual. Marlon Brando, em O Selvagem, lançado no mesmo ano, viveu um jovem líder de uma gangue de motociclistas, vestindo camiseta justa e jaqueta de couro. Dean e Brando tornaram-se os modelos daquela geração: o comportamento rebelde, agressivo e sensual de seus personagens era imitado pelos garotos e arrancava suspiros das moças. Nessa época, formaram-se violentas gangues de jovens em quase todas as grandes cidades do mundo, montados em motonetas scooters e trajando a moda rockabilly: camisetas, jaquetas de couro, calças jeans, costeletas e longos topetes.
Inventava-se, assim, a juventude, identificada pelo comportamento transgressor, pela gíria, pela vestimenta, pela música. Os adolescentes, em qualquer cultura e época, constroem suas identidades ao rejeitar a condição de crianças e romper, às vezes intempestivamente, os vínculos que os mantêm unidos aos pais. A novidade histórica dos anos do pós-guerra foi associar, a essa atitude essencialmente juvenil, dois ingredientes: a ideia de liberdade individual e o consumo. A relação entre esses elementos foi dialética, como diriam os hegelianos e marxistas. A ideia de liberdade como livre arbítrio, herdada das Luzes e fundamental para a concepção ocidental de democracia, foi transformada pelos jovens rebeldes em liberdade para escolher ser diferente dos pais, professores, padres, ou seja, dos adultos. Isso implicava no consumo de bens – músicas, roupas, adereços, filmes, drogas – capazes de defini-los como membros de um grupo que lhes emprestava identidade e, portanto, reforçava a sensação de liberdade.
Hoje, uma das ideias centrais de nossa cultura é a obsessão pela juventude. A infância foi encurtada, pois meninos e meninas querem deixar de ser crianças cada vez mais cedo. A adultice é cada vez mais postergada, pois os adultos relutam em assumi-la e querem permanecer jovens por mais tempo. Se, antes, a juventude era apenas mais um nicho de consumo, hoje se tornou o eixo quase único a orientar a produção da música, moda, cinema e outros (...)

21/07/2009 - Luis Bustamante









segunda-feira, maio 7

IDENTIDADES NA PÓS-MODERNIDADE: DICAS PARA PESQUISAR

Galerinha boa do Mario Lopes, eis aí algumas indicações para o Trabalho sobre Identidades:

Sobre o tema Identidade de Gênero: feminino vs masculino:

http://www.agenciapatriciagalvao.org.br/index.php
(site que atua na produção de notícias sobre mulheres brasileiras)

http://escrevalolaescreva.blogspot.com.br/
(blog da professora Lola Aronovich que fala, entre outros assuntos, sobre feminismo)

Sobre o tema Identidade Racial:

http://www.frente3defevereiro.com.br/
(site do grupo Frente Três de Fevereiro, com resultados de ações do grupo no campo da questão racial no Brasil)

Sobre o tema Identidade e  Música:
http://www.tribosurbanas.com/
(blog sobre as diferentes tribos urbanas)

Sobre o tema Identidade e Gênero: a questão homossexual:
http://www.youtube.com/watch?v=HHA-WpPSK4s
(documentário sobre a questão homossexual)

http://www.youtube.com/watch?v=t3PwyfzSrlc
(documentário sobre transsexuais e travestis, quebrando alguns preconceitos sobre os temas)

Fiquem atentos! E compartilhem suas pesquisas pelo blog!!!

sexta-feira, março 23

O TEMA DA DOMINAÇÃO EM ALGUNS TEXTOS LITERÁRIOS

A MORTE DO FUNCIONÁRIO
(Anton Tcheckov)

Numa noite encantadora, o não menos encantador oficial de justiça Ivan Dmitritch Tcherviakov estava sentado na segunda fila da platéia, contemplando, pelo binóculo, "Os Sinos de Corneville". Sentia-se no cúmulo da bem-aventurança. Mas, de repente... É muito comum encontrar-se, nos contos, este "mas, de repente". Os autores têm razão: a vida é tão cheia de coisas inesperadas! Mas, de repente, seu rosto enrugou-se, os olhos contraíram-se, parou a respiração... afastou o binóculo, inclinou-se e... atchim!!! Espirrou, conforme estão vendo. Não é proibido espirrar, seja a quem for e onde for. Espirram os mujiques, os chefes de polícia e, às vezes, os próprios conselheiros-privados. Todos espirram. Tcherviakov não ficou sequer encabulado, enxugou-se com um lencinho e, como pessoa educada, espiou ao redor, para ver se havia incomodado alguém com seu espirro. Chegou-lhe então a vez de ficar perturbado. Viu que um velhinho, sentado na frente, na primeira fileira, enxugava meticulosamente a calva e o pescoço com a luva, murmurando algo. E Tcherviakov reconheceu, naquele velhinho, o general civil Brizjalov, do Departamento da Viação.
- Eu o molhei! - pensou Tcherviakov. - Não é meu chefe, mas apesar de tudo, não fica bem. Devo desculpar-me.
Tossiu, inclinou o busto para frente e murmurou ao ouvido do general:
- Desculpe, Vossa Excelência, eu o borrifei... foi sem querer...
- Não faz mal, não tem importância...
- Perdoe-me, pelo amor de Deus... Realmente, foi sem querer!
- Ah, sente-se, por favor! Deixe-me ouvir a música!
Tcherviakov ficou perturbado, sorriu estupidamente e pôs-se a olhar para o palco. Mas, por mais que olhasse, não sentia a primitiva bem-aventurança. Começou a atormentar-se de inquietação. No intervalo, aproximou-se de Brizjalov, caminhou um pouco para um lado e outro, perto dele, e, vencendo finalmente a timidez, balbuciou:
- Eu o borrifei, Vossa Excelência... Desculpe... Com efeito... eu... não é que...
- Ah, não se preocupe... Eu até já esqueci e o senhor está sempre falando nisso! - disse o general e moveu com impaciência o lábio inferior.
"Diz que esqueceu, mas há maldade em seus olhos", pensou
Tcherviakov, olhando desconfiado para o general. "Nem sequer fala sobre o caso. Seria preciso explicar-lhe que eu não quis, absolutamente... que se trata de uma lei da natureza. Senão, vai pensar que eu quis cuspir nele. Se não pensar assim agora, chegará a essa conclusão mais tarde!...".
Em casa, Tcherviakov relatou à mulher a falha cometida. Pareceu-lhe que ela encarou o ocorrido com demasiada leviandade. Teve um susto, mas se acalmou, ao saber que Brizjalov pertencia a outra repartição.
- Mesmo assim - disse ela - você deve ir lhe pedir desculpas. Senão, vai pensar que você não sabe se comportar em público!
- Isso mesmo! Eu já me desculpei, mas ele se portou de modo estranho... Não disse uma palavra razoável, sequer. Além disso, não houve oportunidade de conversar.
No dia seguinte, Tcherviakov envergou seu novo uniforme de gala, cortou o cabelo e foi à casa de Brizjalov, para se explicar... Entrando na sala de recepção, viu lá muitos solicitantes e, no meio destes, o próprio general, que já iniciara o recebimento das solicitações. Depois de interrogar alguns dos presentes, o general dirigiu o olhar para Tcherviakov.
Se o senhor se recorda, Vossa Excelência, ontem, no "Arcádia" - começou a relatar o oficial de justiça - eu espirrei e... involuntariamente, o borrifei... Des...
- Que tolice... Vá com Deus! E o senhor, que deseja? - perguntou o general, dirigindo-se já a outro solicitante.
"Não quer falar!", pensou Tcherviakov, empalidecendo. "Quer dizer que está zangado... Não, isso não pode ficar assim... vou-lhe explicar...".
Quando o general acabou de atender o último solicitante e dirigia-se já para o interior da casa, Tcherviakóv deu um passo em sua direção, murmurando:
- Vossa Excelência! Se me atrevo a incomodar Vossa Excelência, é justamente, posso dizer, sob o impulso do arrependimento!... Não foi de propósito, o senhor não pode ignorá-lo!
O general fez cara de choro e sacudiu a mão.
- O senhor está simplesmente zombando de mim! - disse, desaparecendo atrás da porta.
"Que zombaria pode haver nisso?", pensou Tcherviakov. "Não se trata de zombaria! É general, mas não pode compreender isso! Se assim é, não vou me desculpar mais perante esse fanfarrão! Diabo que o carregue! Vou escrever-lhe uma carta, mas não o procurarei mais pessoalmente! Juro por Deus!".
Assim pensava Tcherviakov, a caminho de casa. No entanto, não escreveu aquela carta ao general. Ficou pensando, pensando, mas não conseguiu redigi-la. Foi preciso ir explicar-se pessoalmente, no dia seguinte.
- Ontem eu vim incomodar Vossa Excelência - balbuciou, quando o general dirigiu para ele o olhar interrogador - mas não foi para zombar do senhor, conforme se dignou a dizer. Eu estava-me desculpando porque, ao espirrar, borrifei-o... mas, nem pensei em zombaria. Como poderia ousá-lo? Se formos zombar, quer dizer que não haverá, então, qualquer respeito... pelas pessoas...
- Fora daqui! - vociferou de repente o general, que se tornara azul e tremia com todo o corpo.
- O quê? - perguntou, num murmúrio Tcherviakov, empalidecendo de espanto.
- Fora daqui! - repetiu o general, batendo os pés.
Algo se rompeu na barriga de Tcherviakov. Recuou para a porta, sem ver, sem ouvir coisa alguma, saiu para a rua e caminhou lentamente...
Chegando maquinalmente em casa, deitou-se no divã, sem tirar o uniforme de gala e... morreu.

(1883)
"A Dama do Cachorrinho e outros contos"
Trad. Boris Schnaiderman
ED. Max Limonad, 1986.

PAMONHA
(Anton Tcheckov)

Convidei há dias para o meu escritório a governanta de meus filhos, Iúlia Vassílievna. Era preciso acertar as contas.
- Sente-se, Iúlia Vassílievna! - disse - Vamos fazer as contas. Com certeza, está precisando de dinheiro e a senhora‚ tão cerimoniosa que não pede sozinha... Bem... ficou ajustado entre nós que seriam trinta rublos por mês...
- Quarenta...
- Não, Trinta... Eu tenho anotado... Sempre paguei trinta rublos às governantas...Bem, a senhora residiu aqui durante dois meses...
- Dois meses e cinco dias...
- Dois meses exatos... Anotei assim. Quer dizer que tem a receber sessenta rublos... Descontando nove domingos... a senhora, realmente, não deu aula ao Kólia nos domingos, mas apenas passeou com ele... E mais três feriados...
Iúlia Vassílievna ficou vermelha e pôs-se a puxar uma franja do vestido, mas... não disse palavra!...
- Três feriados... quer dizer que temos a descontar doze rublos... Kólia esteve doente quatro dias e, por isso, não estudou... A senhora, então, deu aula apenas a Vária... Durante três dias, a senhora teve dor de dente e minha mulher dispensou-a das aulas da tarde... Doze e sete são dezenove. Descontando... ficam... hum... quarenta e um rublos... Certo?
O olho esquerdo de Iúlia Vassílievna ficou congestionado e nublou-se. Começou a tremer-lhe o queixo. Tossiu nervosa, assoou-se, mas... sem dizer palavra!
- Na noite de Ano Bom, a senhora quebrou uma xícara de chá e um pires. São menos dois rublos... A xícara é uma relíquia, custa mais caro, mas... vá lá, Deus que a perdoe! Nossas coisas já se têm estragado em tantas ocasiões! Depois, devido a uma falta de atenção por parte da senhora, Kólia trepou numa árvore e rasgou o paletozinho... São menos dez... A arrumadeira, em consequência igualmente de uma distração sua, roubou os sapatos de Vária. A senhora deve cuidar de tudo. Está contratada e recebe ordenado. Quer dizer que devemos tirar mais cinco... No dia dez de janeiro, a senhora levou emprestados de mim dez rublos...
- Eu não levei! - murmurou Iúlia Vassílievna.
- Mas está anotado aqui!
- Está bem...seja.
- De quarenta e um, tira-se vinte e sete, sobram quatorze...
Os olhos da governanta encheram-se de lágrimas... O suor apareceu sobre seu narizinho comprido e gracioso. Pobre menina!
- Eu só levei uma vez - disse ela, a voz trêmula. - Levei três rublos de sua senhora... Não levei mais nada...
- E agora? Imagine, eu nem anotei isso! Tirando três de quatorze, fica onze... Aqui está o seu dinheiro, minha cara! Três... tres, três... um e um... Queira receber!
Dei-lhe os onze rublos... ela os tomou e enfiou-os no bolso, com dedos trêmulos.
- Merci - murmurou.
Levantei-me de um salto e pus-me a andar pelo quarto. O furor apossou-se de mim.
- Mas, por que este merci? - perguntei.
- Pelo dinheiro...
- Mas eu a assaltei, diabos, eu lhe roubei dinheiro! Por que merci?
- Noutras casas, cheguei a não receber nada...
- Não recebeu nada! Compreende-se! Eu caçoei da senhora, dei-lhe uma lição cruel... Vou lhe pagar todos os seus oitenta rublos! Estão preparados para a senhora, neste envelope! Mas, como é que se pode ser moleirona assim? Porque não protesta? Por que fica quieta? Pensa que, neste mundo, pode-se não ser audacioso? Pensa que se pode ser tão pamonha?
Ela esboçou um sorriso azedo e eu li em seu rosto: "Pode-se sim!".
Pedi-lhe perdão por aquela lição cruel e dei-lhe, para seu grande espanto, os oitenta rublos. Pôs-se a balbuciar merci com timidez e saiu do escritório. Acompanhei-a com o olhar e pensei:
- É fácil ser forte neste mundo!
(1883)
"A Dama do Cachorrinho e outros contos"
Trad. Boris Schnaiderman
ED. Max Limonad, 1986.

UM APÓLOGO
(Machado de Assis)

Era uma vez uma agulha, que disse a um novelo de linha:
— Por que está você com esse ar, toda cheia de si, toda enrolada, para fingir que vale alguma cousa neste mundo?
— Deixe-me, senhora.
— Que a deixe? Que a deixe, por quê? Porque lhe digo que está com um ar insuportável? Repito que sim, e falarei sempre que me der na cabeça.
— Que cabeça, senhora? A senhora não é alfinete, é agulha. Agulha não tem cabeça. Que lhe importa o meu ar? Cada qual tem o ar que Deus lhe deu. Importe-se com a sua vida e deixe a dos outros.
— Mas você é orgulhosa.
— Decerto que sou.
— Mas por quê?
— É boa! Porque coso. Então os vestidos e enfeites de nossa ama, quem é que os cose, senão eu?
— Você? Esta agora é melhor. Você é que os cose? Você ignora que quem os cose sou eu e muito eu?
— Você fura o pano, nada mais; eu é que coso, prendo um pedaço ao outro, dou feição aos babados...
— Sim, mas que vale isso? Eu é que furo o pano, vou adiante, puxando por você, que vem atrás obedecendo ao que eu faço e mando...
— Também os batedores vão adiante do imperador.
— Você é imperador?
— Não digo isso. Mas a verdade é que você faz um papel subalterno, indo adiante; vai só mostrando o caminho, vai fazendo o trabalho obscuro e ínfimo. Eu é que prendo, ligo, ajunto...
Estavam nisto, quando a costureira chegou à casa da baronesa. Não sei se disse que isto se passava em casa de uma baronesa, que tinha a modista ao pé de si, para não andar atrás dela. Chegou a costureira, pegou do pano, pegou da agulha, pegou da linha, enfiou a linha na agulha, e entrou a coser. Uma e outra iam andando orgulhosas, pelo pano adiante, que era a melhor das sedas, entre os dedos da costureira, ágeis como os galgos de Diana — para dar a isto uma cor poética. E dizia a agulha:
— Então, senhora linha, ainda teima no que dizia há pouco? Não repara que esta distinta costureira só se importa comigo; eu é que vou aqui entre os dedos dela, unidinha a eles, furando abaixo e acima...
A linha não respondia; ia andando. Buraco aberto pela agulha era logo enchido por ela, silenciosa e ativa, como quem sabe o que faz, e não está para ouvir palavras loucas. A agulha, vendo que ela não lhe dava resposta, calou-se também, e foi andando. E era tudo silêncio na saleta de costura; não se ouvia mais que o plic-plic-plic-plic da agulha no pano. Caindo o sol, a costureira dobrou a costura, para o dia seguinte. Continuou ainda nessa e no outro, até que no quarto acabou a obra, e ficou esperando o baile.
Veio a noite do baile, e a baronesa vestiu-se. A costureira, que a ajudou a vestir-se, levava a agulha espetada no corpinho, para dar algum ponto necessário. E enquanto compunha o vestido da bela dama, e puxava de um lado ou outro, arregaçava daqui ou dali, alisando, abotoando, acolchetando, a linha para mofar da agulha, perguntou-lhe:
— Ora, agora, diga-me, quem é que vai ao baile, no corpo da baronesa, fazendo parte do vestido e da elegância? Quem é que vai dançar com ministros e diplomatas, enquanto você volta para a caixinha da costureira, antes de ir para o balaio das mucamas? Vamos, diga lá.
Parece que a agulha não disse nada; mas um alfinete, de cabeça grande e não menor experiência, murmurou à pobre agulha:
— Anda, aprende, tola. Cansas-te em abrir caminho para ela e ela é que vai gozar da vida, enquanto aí ficas na caixinha de costura. Faze como eu, que não abro caminho para ninguém. Onde me espetam, fico.
Contei esta história a um professor de melancolia, que me disse, abanando a cabeça:
— Também eu tenho servido de agulha a muita linha ordinária!

Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 9 - Contos", Editora Ática - São Paulo, 1984, pág. 59.

***

Indico, ainda, a leitura do conto "O inimigo", também do Tcheckov

sexta-feira, fevereiro 17

A formação do ponto de vista: análise e discussão de canção e poemas

O RODO COTIDIANO (MY BROTHER)

O Rappa

Ooooo my brother (4x)


A ideia lá corria solta
Subia a manga amarrotada social
No calor alumínio nem caneta nem papel
E uma ideia fugia
Era o rodo cotidiano
Era o rodo cotidiano
Espaço é curto quase um curral
Na mochila amassada uma quentinha abafada
Meu troco é pouco, é quase nada
Meu troco é pouco, é quase nada

Ooooo my brother (4x)

Não se anda por onde gosta
Mas por aqui não tem jeito
Todo mundo se encosta
Ela some ela no ralo de gente
Ela é linda mas não tem nome
É comum e é normal
Sou mais um no Brasil da central
Da minhoca de metal que corta as ruas
Da minhoca de metal
Como um Concorde apressado
Cheio de força, voa, voa mais pesado que o ar
E o avião, o avião, o avião do trabalhador.



O BICHO (MANUEL BANDEIRA)

Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.


Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.


O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.


O bicho, meu Deus, era um homem.



FERRO (CUTI, Batuque de tocaia, 1982)

Primeiro o ferro marca

a violência nas costas

Depois o ferro alisa

a vergonha nos cabelos

Na verdade o que se precisa

é jogar o ferro fora

é quebrar todos os elos

dessa corrente

de desesperos


quinta-feira, fevereiro 16

Atividade feita a partir dos poemas "Nada é impossível de mudar" e "Elogio da Dialética"













CORAGEM

porque eu estou vivo?
estou vivo porque tenho
motivos para viver
você pode exterminar minha esperança
e metralhar a minha ética
mas,até quando você fará isso?
até quando deixarei ser dominado?
estaremos prontos para a batalha
quando um novo dia surgir
talvez demore
talvez não
vocês podem sacrificar nossos corpos
mas a nossa alma
será sempre livre
a coragem não é só uma palavra
para aqueles que a honram
Mary (Maryaline)

imagem 1: Guilherme Silva
imagem 2: Igor Ribeiro Mesquita
imagem 3: Rodrigo Caetano
imagem 4: Ingrid Medina

quinta-feira, fevereiro 9

Aula sobre a formação do ponto de vista - poemas de Bertolt Brecht

Nada É Impossível De Mudar


Desconfiai do mais trivial,


na aparência singelo.


E examinai, sobretudo, o que parece habitual.

Suplicamos expressamente:

não aceiteis o que é de hábito como coisa natural,

pois em tempo de desordem sangrenta,


de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,


de humanidade desumanizada,

nada deve parecer natural

nada deve parecer impossível de mudar.



O Elogio da Dialética (Bertolt Brecht)


A injustiça passeia pelas ruas com passos seguros.
Os dominadores se estabelecem por dez mil anos.
Só a força os garante.
Tudo ficará como está.
Nenhuma voz se levanta além da voz dos dominadores.

No mercado da exploração se diz em voz alta:
Agora acaba de começar:
E entre os oprimidos muitos dizem:
Não se realizará jamais o que queremos!
O que ainda vive não diga: jamais!
O seguro não é seguro. Como está não ficará.
Quando os dominadores falarem
falarão também os dominados.
Quem se atreve a dizer: jamais?
De quem depende a continuação desse domínio?
De quem depende a sua destruição?
Igualmente de nós.
Os caídos que se levantem!
Os que estão perdidos que lutem!
Quem reconhece a situação como pode calar-se?
Os vencidos de agora serão os vencedores de amanhã.
E o "hoje" nascerá do "jamais".

créditos das imagens:
1 - Nilton Kukuda/Agência Estado
2 - Divulgação. foto do filme "Zumbi Somos Nós"